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Ficção Científica?

Por Cesar Brod

Data de Publicação: 28 de Março de 2008

Estendi a roupa no varal e, mais uma vez, pensei: Que fim de mundo! Parei de contar a passagem do tempo depois que não tinha mais o lote de roupas que durasse uma semana. Antes era mais fácil, pouca matemática. Um pequeno corte por semana na camisa que, depois que puiu, confundiu meus cortes com outros que surgiram do uso. Ela fica pendurada ali, de bandeira e biruta, só pra lembrar-me de um tempo onde a contagem das semanas e a direção do tempo importavam. Ainda escrevo, nesse diário, uma linha por dia. Mas como, aqui, o sol nasce e se põe irregularmente e eu pouco durmo, não sei mais bem a relação entre os meus dias e os dias da Terra. Mais matemática. Eu devia ter decorado a fórmula de conversão. Recomendaram-me isso, mas confiei demais na máquina e em meus procedimentos de manutenção. Afinal, havia a possibilidade da máquina reserva e a constante expectativa de que eles voltariam, que alguém me substituiria.

Quando a máquina que contava os dias (a mesma que eu alimentava com meus registros do nascer e pôr do sol, junto com os resultados de semeadura e colheita) falhou, segui o procedimento. Removi as unidades de memória, de contagem de tempo e registros meteorológicos. Abri a unidade que continha a reserva só para descobrir que ela não existia. Liguei o farol, que deveria emitir um sinal constante para a base mais próxima e esperei, muito.

Fiquei sem dormir por três sóis. O que não significa muito aqui pois tanto a rotação quanto a translação desse planeta são complexas demais para que alguém saiba a duração dos dias em termos terrestres. A máquina calculava, com base nas variações das marés subterrâneas, na posição desse sol ante uma série de outras estrelas referenciais (era necessário um mínimo de dezessete) e outros fatores que compunham uma fórmula complexa (aquela que recomendaram que eu decorasse) a equivalência com os dias terrestres.

Até tentei decorar a tal fórmula, mas era tanto trabalho...

No início, a cada alarme da máquina eu verificava os sensores de posicionamento referencial das estrelas. Inicialmente trinta, de um mínimo de dezessete. Por dias, dias, mais dias, invarialvemente, todos os astros estavam na posição correta. Mas fui negligente.

Os primeiros arbustos de feijão floriram! Eu nunca havia visto uma flor. Aliás, nunca tinha visto uma planta viva. Tentei manter meu trabalho até que comecei a encantar-me com o germinar do que estava semeando. De repente, a perspectiva de criar e poder comer algo novo, do que cuidei, pareceu-me selvagem e excitante. Muito mais excitante que o eterno reciclar de tudo o que havia na Terra e que se esgotava. Aliás, a razão pela qual vim parar aqui. Foi depois disso que a máquina parou.

Entre as flores, as vagens e a colheita, que fiz rigorosamente de acordo com as instruções, esqueci dos sensores e fiquei em puro estado de contemplação do novo. Para mim, ao menos...

Eu já sabia que o plantio e a colheita era algo trivial aos nossos primitivos ancestrais. Presenciar isso, porém, fez-me negligenciar todo o resto de minha missão.

Novas sementes caíam, em envelopes térmicos, nas proximidades da área de testes. Isso acontece automaticamente. Um satélite orbital mantém as sementes preservadas e as lança ao solo de tempos em tempos. Era o plano para tornar esse planeta um celeiro alimentar. Sei que são sementes raras, recuperadas de fósseis encontrados na Terra e que chegaram a ser considerados a "salvação da humanidade". Pena que o solo terrestre não aceitasse novos frutos, tão morto que estava.

Inscrevi-me nesse projeto como cientista, para ter a oportunidade de presenciar, em primeira mão, o que era um cultivo. A quantidade de sementes e planetas nos quais elas podiam germinar era muito limitada. Recursos humanos com o conhecimento necessário para a missão também. Sabíamos disso. Um cientista para cada um dos seis planetas escolhidos, com uma "dose" de um milhão de sementes cada. Sementes diversificadas, exemplos do que nossos ancestrais comiam, recuperadas de um sítio arqueológico convenientemente encontrado em um momento de crise da reciclagem alimentar na Terra.

Meus primeiros relatórios expunham uma certa "inteligência das sementes". Um germinar fraco, que muitas vezes não vingava, parecia "preparar a terra" para um próximo. Eu tinha uma curiosidade imensa de saber o que acontecia nos outros planetas, com os outros cientistas, mas nunca recebi um relato. Espero que tenham recebido os que mandei antes da falha da máquina.

Depois de tempos sem contato, deixei de usar as sementes-fósseis que caíam do satélite. Primeiro para preservá-las em sua embalagem, garantindo algum reuso futuro. Segundo porque maravilhei-me ao ver minhas plantas produzindo novas sementes, que geravam novas plantas, melhores do que as produzidas pelas sementes do projeto.

Mas o que eu queria mesmo saber dos outros planetas é, se o mesmo que aconteceu comigo, aconteceu com os outros cientistas. Não como mais dos estoques que vieram da Terra. depois da primeira colheita de feijão e dos testes de cozimento, só como do que produzo. Começou a nascer-me uma penugem na cabeça e em outras partes do corpo. A da cabeça agora é longa, adornada por fibras secas que teço das folhas que colho.

Passei a sentir um vigor novo, uma força, uma vontade inédita de exercitar todos os meus músculos, até os de meu pênis. Ele passou a expelir um líquido outro, que não a urina, a cada vez que está rijo, o que é muito prazeroso. Imagino se esse líquido também seria recilcado na Terra. Uso-o como nutriente para as minhas plantas.

Faz-me falta, porém algo que não consigo definir, mas que é o motor maior dessa necessidade que tenho de seguir registrando as maravilhas que presencio aqui. Minha falta é a de falar com alguém, abraçar. Acho até que o líquido que sai de meu pênis rijo é o pedido de um contato social. É estranho falar nisso, mas penso com freqüência em colegas cientistas do sexo oposto.

Não sei medir ou definir o que acontece comigo, mas essa falta de outros devia ter algum nome no passado. Sinto a chamada de um certo "eu" primitivo.

Mais estranho é que, plantas que não plantei, já nascem. Pequenos seres, definitivamente não humanos e nem inteligentes, caminham entre elas. Cozinhei uma série deles com feijão e gostei.

Não me preocupo mais com a passagem de tempo e esqueci as roupas no varal. Como será que estão as coisas na amada Terra?

Sobre o autor

Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.

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