Pesquisa e Desenvolvimento com Software Livre
Colaboração: Rubens Queiroz de Almeida
Data de Publicação: 20 de Janeiro de 2000
O papel primordial de qualquer universidade é a criação e disseminação
de informações e conhecimentos. Este dever das universidades tem
sido consideravelmente facilitado pelas milhares de alternativas
oferecidas pelo mundo do software livre. O software livre, desde o
sistema operacional, representado por sistemas como GNU/Linux, FreeBSD
e vários outros, e os milhares de aplicativos existentes, nos fornecem
uma plataforma para o desenvolvimento de praticamente qualquer tipo de
solução. Soluções administrativas e ferramentas para pesquisa científica
estão ao alcance de qualquer pessoa que disponha de computadores tão
simples como um 486.
Apenas para citar um exemplo nesta linha, o Centro de Pesquisas
Agrícolas da Unicamp, CEPAGRI, até pouco tempo atrás hospedava seu
servidor Web em um computador modelo 486, 33MHZ, com 16 MB de memória
RAM. O CEPAGRI todos os dias tem uma exposição na televisão fornecendo a
previsão do tempo para a repetidora da rede Globo, e contabiliza milhares
de acessos diários. Seu servidor Web, além de fornecer a previsão
do tempo, disponibiliza também imagens de satélite para download.
Um fator a ser lembrado é que com a rápida evolução dos sistemas
livres, a instalação e configuração de um servidor Web pode ser feita
com pouquissima intervenção por parte do usuário, com a maior parte do
processo sendo totalmente automatizado. Este serviço roda hoje em um
computador 486/66MHZ, com 32 MB RAM.
O uso de software livre no mundo acadêmico já vem de longa data. Os
softwares desenvolvidos pela Free Software Foundation são referência
obrigatória para administradores de sistemas de todo o mundo. A instalação
de um sistema Unix proprietário geralmente é demorada porque em seguida
à instalação do sistema é necessário que se compile todo o conjunto de
aplicativos GNU.
Em 1994, quando da instalação do Centro Nacional de Processamento de
Alto Desempenho em São Paulo, também sediado na Unicamp, foi adotada uma
solução computacional baseada em computadores IBM/SP2. A grande maioria
das ferramentas para processamento paralelo eram livres e gratuitas. Para
processamento científico com computação paralela a solução adotada
era o programa PVM (Parallel Virtual Machine), também livre e gratuito.
No suporte aos sistemas eram empregadas ferramentas como AMD (Automounter
Daemon), SUP (Software Update Protocol), NTP (Network Time Protocol). O
software para gerenciamento de tarefas, este proprietário da IBM,
o LoadLeveller, era baseado na versão pública do software Condor,
desenvolvido na Universidade de Wisconsin.
Uma das questões com relação ao software livre é que ao instalar
software de origem desconhecida, a integridade do sistema operacional
poderia estar sendo comprometida por código malicioso, que poderia causar
danos aos dados ou a outros computadores. Pois em mais de dez anos usando
software livre NUNCA encontramos nada que pudesse prejudicar alguém ou
causasse algum tipo de dano. Já as violações da privacidade causadas
por várias softwares comerciais são bem conhecidas. A questão é, não
podemos confiar naquilo a que não temos acesso.
Nas universidades, até bem pouco tempo, a maior parte do
processamento científico era feita em máquinas com sistemas Unix e o
processamento administrativo era feito em sistemas proprietários, como os
equipamentos de grande porte comercializados pela IBM e diversos outros
fabricantes. Esta opção por plataformas proprietárias vem de muito tempo
atrás, quando não existiam alternativas. Todas as soluções existentes
não se comunicavam com as demais. O dilema para os administradores era
terrível, pois qualquer opção que se fizesse desembocaria inevitavelmente
em uma situação de aprisionamento, com o cliente integralmente nas
mãos do fornecedor, tanto em termos das soluções oferecidas como dos
preços. A IBM, por seu excelente serviço de atendimento aos clientes
e pela excelência de seu hardware, capturou a maior parte do mercado,
a custos geralmente extremamente elevados. Algumas empresas fecharam
os olhos e pularam em um modelo único e fechado, ao passo que outras,
ao optarem pela diversidade de plataformas, se viram com a incumbência
não menos invejável de terem que gerenciar e manter diversos ambientes,
com os custos daí decorrentes de manutenção de uma equipe de suporte e
desenvolvimento para cada um dos ambientes.
A questão principal entretanto é que este modelo não oferecia
alternativas. Felizmente este não é mais o caso. Alternativas hoje temos
muitas, o mais difícil é a mudança de mentalidade, em acreditar que
sistemas completos de gestão universitária e para pesquisa baseados em
software livre podem ser criados e mantidos com custos muito menores do
que sua contrapartida proprietária. Sistemas proprietários por definição
constituem um tremendo obstáculo a inovação. Estes obstáculos são o
elevado custo de aquisição de licenças e sua manutenção. Cada nova
funcionalidade ou serviço que se deseja oferecer representa uma nova
fonte de gastos. O controle dos softwares proprietários instalados em
cada computador, não é tarefa fácil e representa uma grande dor de cabeça
para administradores de sistemas.
Muito do conhecimento gerado em universidades é inacessível ao público
em geral, não por um desejo de ocultá-lo mas pela falta de mecanismos
adequados que o tornem disponível a todos que dele necessitem. Uma das
prioridades para o site institucional da Unicamp foi estabelecer um
indexador de todo o conteúdo disponível na Web da universidade. Foram
feitos experimentos com indexadores conhecidos no mercado como Altavista e
Infoseek, porém o altissimo custo financeiro para a aquisição de licenças
para a indexação da quantidade de informação disponível na Unicamp tornava
esta alternativa inviável. Optamos então pelo software livre htdig,
que nos permitiu trazer a tona para nossa comunidade de usuários muita
informação que até então estava disponível apenas a uns poucos. Com isto
tivemos uma sensível melhora no serviço prestado à nossa comunidade.
Na gestão do conhecimento temos visto diversas iniciativas aparecerem
no mundo acadêmico. Hoje temos ferramentas de altissima qualidade para
criação de conteúdo dinâmico para a Web, como PHP e o banco de dados MySQL
e PostGres. O Centro de Computação da Unicamp em parceria com o Instituto
Vale do Futuro, coordenam uma equipe de desenvolvimento de aplicativos
para a criação de componentes para aprendizado a distância. Todos os
aplicativos criados serão licenciados sob a licença GPL.
O primeiro destes componentes foi o sistema Rau-Tu de perguntas e
Respostas. O objetivo principal deste sistema é criar um forum onde
colaboradores voluntários possam responder perguntas dos visitantes. O
primeiro sistema Rau-Tu criado teve como tópico principal sistemas
GNU/Linux. Poucos dias após o seu lançamento mais de 200 colaboradores
haviam se inscrito. Os colaboradores são pontuados de acordo com
a qualidade de seu trabalho e pela rapidez com que respondem as
perguntas. As perguntas feitas pelos visitantes são rapidamente
respondidas e após a avaliação feita pelo usuário, são armazenadas
em um banco de dados. Um segundo sistema Rau-Tu já foi lançado para
discutir tópicos relacionados com educação a distância e esperamos que
com o lançamento de sua homepage e a disponibilização do código fonte da
versão 1.0, o número de sistemas Rau-Tu se multiplique exponencialmente,
gerando conhecimento para toda a sociedade.
Com software livre a liberdade de criar e inovar é total. A maioria
dos softwares estão disponíveis na Internet a custo zero. Com o código
fonte disponível tudo o que é necessário é um pouco de conhecimento para
adequar o que existe às nossas necessidades.
Como exemplo posso citar um sistema de solicitação e acompanhamento de
serviços que era uma das metas do Centro de Computação da Unicamp. Como
era um software para uso interno e também devido à grande evasão de
técnicos de informática que se deu na Unicamp a partir de 1998, o
sistema foi sendo deixado de lado para atender a outras demandas mais
prioritárias. A estimativa é que o desenvolvimento deste sistema iria
requerer o trabalho de aproximadamente seis técnicos por um período
de seis meses, com um custo aproximado de R$ 90.000,00. Na Internet
existem várias alternativas de softwares com esta função. Resolvemos
então investigar um software chamado Request Tracker, desenvolvido em
Perl e com banco de dados MySQL. Fizemos a instalação e constatamos que
atendia a mais de 90% do projeto original. De posse dos fontes em Perl,
iniciamos então a tradução do pacote e fizemos também algumas adaptações
na interface. A tradução do software foi feita em dois dias e a adaptação
da interface consumiu mais quatro horas. A versão traduzida será em
disponibilizada no site do desenvolvedor, onde ficará disponível para
quem mais dela desejar se valer.
Além da economia em desenvolvimento de software, o hardware baseado
em processadores Intel e compatíveis, tem se mostrado à altura de
tarefas antes possíveis apenas em soluções proprietárias. Para o
desenvolvimento das atividades do grupo de educação a distância da
Unicamp, a proposta original era um equipamento de arquitetura RISC e com
poder de processamento e armazenamento suficiente para atender com folga
a demanda esperada por tais serviço. Constatamos, após uma pesquisa de
preços, que tal equipamento, a preços de mercado e com a configuração
que tínhamos em mente, situa-se na faixa de preço de R$ 100.000,00 a R$
140.000,00.
A aquisição de um equipamento nesta faixa de preço
deve cercar-se de grandes cuidados, e consequentemente, o
processo de compra é bastante demorado. Como tínhamos
uma grande urgência de iniciarmos a atuação nesta
área, optamos por uma solução baseada na arquitetura
Intel e com software livre.
Fizemos então, juntamente com o Centro de Manutenção de Equipamentos
da Unicamp, CEMEQ, a especificação e montagem de um computador com dois
processadores do tipo Pentium III, 750 MHZ, com 72 GB de disco e 512
MB de memória RAM, e escolhemos os melhores componentes disponíveis
no mercado. Os componentes foram adquiridos separadamente no mercado e
montados pelo CEMEQ. O custo total deste computador foi de R$ 9.000,00.
Um computador equivalente, a preços de mercado, situa-se na faixa de R$
30.000,00.
O sistema operacional que adotamos foi o Conectiva Linux, versão
6.0, que foi instalado e configurado em cerca de 30 minutos. A máquina
foi colocada em funcionamento para produção no mesmo dia em que foi
entregue. É desnecessário dizer que nem no melhor do mundo dos sonhos tal
rapidez teria sido possível com uma solução proprietária, onde o número
de aborrecimentos se multiplica. Limite no número de usuários, instalação
de licenças, número máximo de conexões via rede e assim por diante.
Esta alternativa nos permitiu um início imediato de atividades e
ao mesmo tempo, por ser facilmente expansível, nos provê um caminho
de atualização do hardware que nos permitirá atender ao crescimento
da demanda.
Outra questão importante diz respeito à manutenção. O argumento
que se usa é que para máquinas corporativas vitais o funcionamento
deve ser ininterrupto e que deve se pagar o que for necessário para
se alcançar esta meta. Sem dúvida alguma tal afirmação é correta, mas
existem alternativas. O servidor para Educação a Distância da Unicamp
é um destes serviços que precisam ter disponibilidade integral. A nossa
opção foi adquirir um segundo equipamento e com as ferramentas de alta
disponibilidade disponíveis no Conectiva 6.0 garantir o funcionamento
ininterrupto do serviço.
Em caso de problemas com o servidor, o equipamento de reserva
prontamente assume seu papel em poucos segundos. Temos então um
custo total de R$ 18.000,00, ainda bem mais barato que a solução
originalmente pensada. Estes equipamentos têm garantia de 3 anos,
ao final dos quais podemos sem remorso algum troca-los por algo de
tecnologia mais recentemente.
É desnecessário dizer que dificilmente alguma empresa iria encostar
um equipamento de centenas de milhares de reais. Normalmente assinam
contratos de manutenção carissimos e que não garantem o mesmo tipo de
disponibilidade que a solução acima oferece. Empregando-se o valor
do contrato de manutenção na aquisição de plataformas baseadas em
software livre ganha-se em flexibilidade, rapidez e ainda se faz uma
grande economia.
Uma objeção que se ouve com frequência é com relação ao suporte
técnico. Para responder a esta objeção gostaria de citar algumas de minhas
próprias experiências. Muitas vezes o suporte técnico pago oferecido por
grandes fornecedores é lamentável. Já tive a oportunidade de lidar com
atendentes que não faziam a menor idéia do problema que eu apresentava
e logo me via em uma interminável procissão de consultas aos supostos
especialistas. Muitas vezes um técnico de suporte ao não saber como
resolver determinado problema afirmava não haver uma solução para o
caso.
Em outras situações o problema era encaminhado ao laboratório nos
Estados Unidos ou em qualquer outro lugar, onde ficava adormecido por
dias, semanas ou mesmo meses. Neste meio tempo tinhamos que nos virar
como possível. Com o nosso acesso à Internet em 1989, tudo começou
a mudar. Praticamente conseguiamos obter solução para quase todos os
nossos problemas consultando grupos de usuários e foruns de discussão na
Internet. Íamos agora ao fornecedor com a solução pronta e solicitavamos
a correção para nosso problema já com todos os dados em mãos.
Finalmente, gostaria de deixar bem claro que software proprietário
faz mal para a saúde de usuários, empresas e mesmo do país. Empresas
de software são muito generosas com universidades e instituições
de ensino. Esta generosidade entretanto pode ter consequências
catastróficas. Muitas ofertas de descontos de 90% ou mais são frequentes
no mundo acadêmico.
Às vezes são sistemas ambiciosos, que visam converter toda uma base de
conhecimento para um formato proprietário. O que acontece é que passados
alguns anos, depois que a dependência é completa, é feita uma reavaliação
dos termos de licenciamento, onde não é deixada nenhuma alternativa para
a instituição. A regra é invariável, quanto maior a fatia de mercado
que determinado fornecedor dominar, maior o preço e maior o dano.
O ponto principal é que alternativas livres e gratuitas existem e estão
disponíveis a quem quer que as queira utilizar. Sistemas GNU/Linux com
a interface gráfica KDE ou Gnome nos propiciam uma interface simples
e intuitiva. O aplicativo de escritório StarOffice oferece todas as
funcionalidades necessárias para 99% dos usuários. O StarOffice é
pesado? Com a economia feita ao não se adquirir o pacote da empresa
líder de mercado pode-se fazer um upgrade em seu equipamento que lhe
permitirá executar simultaneamente dez versões do StarOffice e ainda
ganhar velocidade para a execução dos outros aplicativos.
Ao contratar empresas para desenvolvimento de sistemas insista em
que a propriedade do código fonte é sua. Recentemente chegou ao meu
conhecimento o caso de uma empresa que pagou mais de um milhão de reais
por um sistema que não foi entregue como especificado, que não funciona,
onde nem o acesso ao código fonte, para tentar se salvar alguma coisa,
foi possível.
O outro problema da situação atual, onde uma única empresa domina mais
de 90% do mercado de sistemas operacionais, é a vulnerabilidade. Problemas
com vírus são uma tremenda dor de cabeça e periodicamente ouvimos relatos
de perdas de centenas de milhões de dólares em empresas do mundo todo
causados por vírus que se disseminam rapidamente pela Internet.
Da mesma forma que entre os seres humanos se incentiva a diversidade
genética, o mesmo deve se dar com os sistemas de computadores. Estamos
hoje na situação em que um único vírus pode chegar a destruir ou danificar
dados em milhões de computadores. Imagine uma guerra em que com apenas uma
bala se aniquile um exército inteiro. Esta é a nossa situação hoje. A
idéia de que um único sistema dominante facilita a interoperabilidade
e a troca de dados não se sustenta. O que se deve lutar para obter são
padrões que todos possam seguir, como os protocolos TCP/IP que tornaram
a Internet viável e que possibilitam a comunicação entre dezenas de
sistemas diferentes.
De tudo o que foi dito acima é claro que uma grande economia pode
ser feita com a adoção de alternativas baseadas em software livre. A
economia de recursos entretanto não é o ponto principal e sim a
liberdade de se poder escolher. A sociedade baseada na informação que
vem se delineando nos últimos anos está criando novos divisores, novos
fatores de exclusão. O uso de software livre é um fator estratégico para
o desenvolvimento nacional, para a competitividade de nossos produtos
no mercado mundial e para a melhoria de nossa qualidade de vida. O
pioneirismo da administração do Rio Grande do Sul é um exemplo que
precisa ser seguido e rápido por toda a administração pública municipal,
estadual e federal. Muitas empresas já se deram conta desta realidade
mas ainda existe muito a ser feito. Precisamos começar, e rápido.