O escândalo dos doutores
Colaboração: Renato Mezan
Data de Publicação: 09 de Abril de 2005
Renato Mezan é Professor titular da PUC-SP, autor de "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva), entre outros livros.
Abro meu e-mail e deparo com uma chamada intrigante: "A PUC-SP
[Pontifícia Universidade Católica] não discrimina doutores". Quem
envia a mensagem é a Assessoria de Comunicação Institucional
(Acipuc): para meu espanto, fico sabendo que muitas faculdades
particulares se recusam a contratar professores com título de doutor
ou, mesmo, os despedem logo após a defesa. E por quê? Porque um
doutor ganha alguns reais a mais que um mestre, e, este, mais do
que um bacharel, licenciado ou especialista.
Dia seguinte: encontro na Ilustrada uma crônica de Moacyr Scliar,
"Crime e Castigo". O coordenador está passando uma descompostura
no professor, cuja freqüência a um curso de pós-graduação acaba
de ser descoberta: como ousa ele fazer tamanha bobagem? E dá-lhe
ameaças! O professor, atônito, concorda em desistir da pós ou, pelo
menos, manter secreto o seu título quando o obtiver -qualquer coisa,
desde que não perca o emprego.
Conversas com colegas me fazem ver que o assunto não é, como
havia pensado, uma piada de mau gosto. A "discriminação contra
os doutores", por motivos que beiram o ridículo -mais R$ 10
por hora-aula-, na maioria das vezes é um dos escândalos mais
grotescos que encontramos nesse amontoado de aberrações em que
se converteu o ensino superior pago neste país. Custa a crer que
o aperfeiçoamento de um professor seja causa de demissão ou de
não-contratação; no entanto é o que vem acontecendo em inúmeras
escolas particulares. Aqueles com quem conversei a respeito estão
receosos; temem ser postos no olho da rua se forem identificados. Mas
suas experiências são "amargas", como me disse um deles.
Não basta, contudo, esfregarmos os olhos e nos indignarmos com
esse absurdo.
É preciso refletir sobre o que ele significa, sobre o descalabro que
se instalou no setor pago do ensino superior. O paradoxo torna-se
ainda maior se lembrarmos que, nas últimas décadas, órgãos como o
CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico],
a Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
e a Fapesp Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
aplicaram centenas de milhões de reais em bolsas de mestrado,
doutorado e pós-doutorado, visando à capacitação do pessoal docente
e, por extensão, à melhoria do nível de ensino no país.
Apenas uma fração dos que obtêm esses títulos podem ser absorvidos
pelas universidades públicas ou por escolas particulares que
valorizam a titulação, como as PUCs, FGVs e algumas (poucas)
outras. Quando o recém-doutor envia seu currículo ou vai fazer
uma entrevista, descobre que seu título depõe contra ele, que está
"overqualified"...
Sabemos que, para credenciar um curso, o Ministério da Educação exige,
entre outras coisas, uma certa cota de doutores e mestres no corpo
docente; mas essa cota muitas vezes não é observada ou, quando o é,
portadores de certificados de especialização (curso no qual não é
preciso redigir uma tese) contam como mestres. Credenciado o curso,
as verificações são esparsas e complacentes, aceitando-se explicações
esfarrapadas para a insuficiência de pessoal titulado.
Estamos diante de uma concepção do ensino como mercadoria e
da mão-de-obra que produz essa mercadoria como fator meramente
quantitativo, cujos custos devem ser mantidos no patamar mais
baixo possível.
A educação superior está estruturada como uma pirâmide: os alunos
da graduação são educados por alguém que já concluiu seus estudos
universitários e que busca na pós-graduação um complemento para
avançar na carreira.
O título deveria ser um diferencial capaz de decidir uma contratação, como
é nos concursos, mas se verifica o oposto: contanto que sejam preenchidas
as horas-aula, é mais lucrativo pagar menos e selecionar um professor que
tenha apenas bacharelado, argumentando que a "cota" de titulados (10%,
no caso dos doutores) já está preenchida. E os alunos que se danem:
desde que paguem suas mensalidades, o que menos importa a quem lhes
vende um diploma é a qualidade do que for ensinado. Todos conhecemos
"universidades" em que, como nos clubes, para entrar no campus se passa
um cartão pela catraca; basta estar intramuros, ainda que na lanchonete
ou no cabeleireiro, para "ter presença" e não "estourar em faltas".
Conhecimento novo - A miopia dos donos dessas arapucas tem um componente
de ganância e outro de ignorância, esta a respeito da diferença entre
um doutor e um mestre. Um doutor não é apenas um mestre que escreveu
mais uma tese; pelas regras da academia, ele pode orientar candidatos a
ambos os títulos porque é um especialista em sua área e cujo trabalho foi
avaliado publicamente por uma banca na qual pelo menos dois componentes
devem ser de outra instituição.
Não estou idealizando o valor de um título: todos sabemos que há teses
melhores e piores, departamentos mais exigentes ou menos. Mas é lícito
supor que alguém que passou pelo duro teste de duas defesas de tese só
pode enriquecer o curso de graduação em que vier a dar aulas.
Outro equívoco que precisa ser dissipado diz respeito ao "binômio
ensino e pesquisa". Sem querer desqualificar a atividade de
pesquisador, deveríamos reconhecer que muitos professores, titulados
ou não, não possuem vocação para produzir conhecimento novo, que é o
que significa no sentido acadêmico a palavra "pesquisa". Seu talento
é transmitir o conhecimento já existente, algo tão necessário quanto
pesquisar, especialmente nos cursos de graduação, nos quais se trata de
equipar o aluno com o saber já acumulado naquela área de estudo.
Preparar boas aulas não é o mesmo que pesquisar; se é preciso ler,
informar-se, planejar, isso não significa que quem assim procede seja um
investigador desbravando as fronteiras do conhecimento. Por vezes, podem
coincidir na mesma pessoa um ótimo pesquisador e um excelente professor;
mas isso é raro, e é injusto exigir que seja sempre assim.
Deveríamos valorizar a figura do bom professor, empenhado em realizar
seu papel da melhor forma possível. Disso, seguramente, faz parte
a busca de aperfeiçoamento por meio dos cursos de pós-graduação;
esses professores deveriam ser incentivados, e não punidos -é o
mínimo que se pode pensar.
O mínimo necessário - Da mesma forma, os diplomas de nível médio
deveriam ser mais valorizados, melhorando o conteúdo dos cursos
que os conferem e desmistificando a idéia de que somente o diploma
universitário conduz a um futuro mais promissor. Inúmeros alunos
de escolas particulares, sobretudo nos cursos noturnos, não têm
condições -nem desejam- de fazer mais do que o mínimo necessário
para obter um diploma. Por que os iludir, fazendo-os crer que,
ao terminar um curso de quarta categoria, estarão dando o salto
para o sucesso profissional?
Não seria mais digno e mais honesto reconhecer que um curso médio
consistente teria mais efeito, com um custo muito menor de tempo
e de dinheiro?
Mas isso implicaria reconhecer de público o que todos sabem: inúmeras
faculdades particulares têm por objetivo principal o enriquecimento
dos seus proprietários, e, para alcançá-lo, estão dispostas a vender um
serviço de qualidade pavorosa.
O nível do que ali é ensinado só não é pior devido à dedicação de
muitos professores, que consideram sua missão utilizar a disciplina que
lecionam, mesmo que seja de cunho "técnico", para formar, na parca medida
do possível, o espírito dos seus alunos. É indigno que seus empregadores
faturem milhões economizando tostões.
Para terminar, uma sugestão concreta: que, no projeto de reforma
universitária atualmente em debate, sejam introduzidos dispositivos que
favoreçam a maior capacitação do corpo docente, usando os tradicionais
instrumentos empregados pelos cavaleiros para fazer andar suas montarias -
a cenoura e o chicote.
Cenoura: vantagens aos cursos que tenham maior proporção de professores
titulados; chicote: sanções disciplinares e monetárias (provavelmente
as únicas eficazes, nesse território) contra os que, a cada ano,
não aumentarem aquela proporção até chegarem a um nível aceitável de
titulados - por exemplo, 50% de mestres e 30% de doutores. Quem sabe,
ameaçando mexer no bolso dos empresários do ensino, o escândalo da
"discriminação dos doutores" venha a se tornar mais uma das vergonhosas
lembranças que o Brasil esconde nos desvãos da sua memória. Por enquanto,
ele é uma chaga aberta e fede a gangrena.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2003200504.htm
21 março 2005.