Monopólio da cultura em declínio
© Rafael Evangelista
Data de Publicação: 02 de Outubro de 2004
Livro líder de vendas nos EUA está disponível na internet. Fenômeno comprova a tese de que estar na rede não derruba as vendas. Pode até ajudar
Em 1999, fascinado com a internet e o fenômeno mp3, David Bowie já
declarava ao diário inglês The Guardian: "A maneira como a nossa
sociedade quebra os parâmetros tem levado à desintegração da
propriedade intelectual". Mas, ao que parece, isso não afeta os
negócios. Ao contrário, cada vez mais a rede é usada para a divulgação
e distribuição de obras artísticas. O que é interpretado pela
conservadora indústria como o caos, tem se mostrado como o paraíso
para os artistas independentes.
O fato novo que comprova a tese não foi produzido por artistas, mas é
mais uma evidência que se acumula de que a disponibilização online de
obras não necessariamente derruba as vendas no mundo real.
Surpreendentemente, um documento público, que pode ser baixado
gratuitamente na rede, está, há nove semanas, no topo da lista dos
livros mais vendidos do New York Times.
É claro, 9/11 Comission Report, o documento que relata as conclusões
da comissão parlamentar que investigou a responsabilidade do governo
Bush sobre o 11 de setembro, tem um apelo próprio, maximizado pelo
período eleitoral. O livro que o secunda na lista de não-ficção em
brochura trata das experiências de uma professora no Irã - Reading
Lolita in Tehran - e os dois líderes da lista de não-ficção em capa
dura são ataques a Bush e a Kerry - The Family e Unfit for Command,
respectivamente. Mas o fato mostra que estar de graça na internet não
arruína as vendas de ninguém.
Grata surpresa
As grandes vendas assustaram os editores da editora Norton,
responsável pela publicação. Nas livrarias ao preço de US$ 10, o
relatório já ultrapassou a marca de 600 mil exemplares. "Ninguém
antecipou as vendas nesse nível", declarou a editora de publicidade da
Norton, Louise Brockett, à revista Wired.
O fenômeno vai na contramão dos chamados e-books, os livros vendidos
para serem lidos online. Embora as vendas tenham aumentado 28% neste
ano, as cifras mundiais permanecem tímidas: US$ 3,23 milhões, quase
nada se comparado ao mercado bilionário de livros em papel.
Na ficção, mais dificuldades
Poucas pessoas parecem se animar em pagar para ler na tela. O autor de
romances de terror, Stephen King, por exemplo, teve uma experiência
traumática - para ele e principalmente para seus fãs. Depois de
comemorar as grandes vendas do romance Ridding the Bullet, um pequeno
conto escrito quando convalescia de um acidente quase fatal e que foi
vendido por US$ 2,50, King aventurou-se a escrever um livro em
capítulos que seriam publicados gradualmente, The Plant. Depois de
apenas 46% dos leitores terem feito o pagamento - que era voluntário -
pelo quarto capítulo, o autor interrompeu a publicação no sexto, que
já estava escrito. Quem pagou ficou furioso por ter comprado um livro
sem final.
Ao mesmo tempo, escritores independentes e alternativos começam a
liberar seus conteúdos online. Ted Nace, autor de Gangs of America, um
livro que examina as raízes da cultura corporativa estadunidense, está
disponível na internet e nas livrarias. Como não poderia deixar de
ser, o pai da licença Creative Commons - aquela que autoriza o
compartilhamento de obras protegidas por direito autoral -, Lawrence
Lessig, também oferece para download sua última obra, Free Culture,
embora seus livros anteriores continuem nas mãos da editora.
Em português, obras técnicas
No Brasil, literatura online em profusão somente com direitos autorais
vencidos, ou seja, apenas obras antigas. O quadro muda um pouco quando
o assunto são teses acadêmicas e livros técnicos. Univesidades como a
Unicamp e sua Biblioteca Digital fazem um esforço de convencimento
para que os alunos de mestrado e doutorado ofereçam dissertações e
teses a todos. Já o projeto Scielo, mantido por fundações de apoio à
pesquisa, oferece revistas de todas as áreas da ciência.
Uma experiência interessante, embora modesta, foi realizada pelo
programador Aurélio Marinho Jargas, autor do
Guia de Expressões Regulares,
um livro sobre termos usados nos sistemas operacionais
Linux, Unix e Windows. Ele colocou o livro em sua página pessoal,
embora também possa ser encontrado em livrarias. Lançado em agosto de
2001, já vendeu mais de 1,5 mil cópias, marca que o autor comemora.
"Pessoalmente, como programador que por acaso escreveu um livro,
vender um exemplar por dia, durante quase 3 anos, é um marco. Sinto
que essa empreitada foi um sucesso completo", afirma ele na página
onde publica um gráfico com as vendas. "Na média, ganho mais R$ 50 por
mês em direitos autorais. Acredita? Com Expressões Regulares! Quem
diria que isso é vendável? E continua vendendo e rendendo, num ritmo
constante", completa.
Download de mp3 não afeta venda de CDs
No mundo da música, até pesquisadores da Universidade Harvard e da
Carolina do Norte já mostraram que os programas de trocas de arquivos
não afetam as vendas. Em março deste ano, dois pesquisadores dessas
universidades publicaram um estudo, feito durante 17 semanas de 2002,
em que foram cruzados dados sobre a venda de discos e downloads
feitos. A conclusão foi que o efeito de um sobre o outro é
estatisticamente zero e que os usuários que baixam os arquivos na rede
não comprariam os discos mesmo se as músicas não estivessem
disponíveis. Mesmo assim, os processos e as multas contra os usuários
continuam.
Até agora, quem tem feito um melhor uso da internet são as gravadoras
independentes, que usam a rede para superar a dificuldade de
distribuição dos CDs e a verba reduzida para o marketing. A banda
pernambucana Mombojó usou essa estratégia e conseguiu grande destaque
na grande imprensa e mais contatos para shows. Segundo declarou o
empresário da banda, Luciano Meira, ao site Cultura e Mercado,
primeiro a banda começou a ser citada por um grande número de blogs,
já que as músicas estavam disponíveis para resenha, o que foi criando
um movimento até atingir os maiores veículos. O empresário cita o caso
da banda como uma comprovação do que foi afirmado pelos pesquisadores
estadunidenses. "Temos muitos e-mails de pessoas que comentam ter
baixado uma ou algumas músicas no site e daí terem decidido comprar o
CD, aliás, muito em consonância com estudos recém-realizados a este
respeito".
Outro que resolveu oferecer livremente suas músicas foi B Negão,
ex-vocalista do Planet Hemp. Todas suas músicas de seu disco mais
recente, Enxugando Gelo, estão disponíveis em copyleft. Ele usa o site
do Centro de Midia Independente para oferecer as músicas."Você já
ouviu falar em copyleft? Pois é...se informe sobre esse novo método de
compartilhar idéias e conhecimento", diz ao fazer o link.
Ainda no cenário nacional, uma das gravadoras a estratégia de
distribuição de "amostras" de álbuns é a Trama, que oferece algumas -
poucas - músicas de seus principais artistas e mantém o Trama Virtual.
Lá, as bandas independentes podem oferecer suas músicas em um espaço
controlado pela empresa.
Como nos EUA houve o maior número de processos e até prisões de
usuários de usuários de sistemas de trocas de arquivos, o confronto
com a associação das gravadoras é mais saliente. Muitas das gravadoras
de música alternativa e independente já se dizem parte das campanhas
em favor da não criminalização do download. "Vamos provar a todos que
o download pode ajudar os artistas e não prejudicá-los", diz a
Go-Kart, que reúne artistas como os Buzzcocks e Lunachicks. Ela
oferece o álbum completo de algumas bandas e pede que os fãs apóiem os
artistas, comprem o disco e assistam o show.
Quem manda são as gravadoras
A decisão sobre compartilhar ou não parece parece que não está nas
mãos dos artistas e sim das gravadoras. Mesmo que tenham se declarado
contra a política das gravadoras ou afirmado apoio ou ao copyleft ou
às licenças da Creative Commons, a maior parte do catálogo de nomes
como Pearl Jam, Beastie Boys, David Byrne, REM e outros continua
fechada. No máximo, alguns desses artistas conseguem a liberação de
direitos da gravação não-oficial de seus shows.
Nem o ministro da cultura Gilberto Gil conseguiu a liberação de três
de suas músicas com a licença da Creative Commons. Sua gravadora, a
Warner, não permitiu que Refazenda, Refavela e Realce fossem liberadas
para download gratuito, como estipula a licença. Gil teve, então, que
oferecer Oslodum, cujos direitos pertencem a ele.
Essa mesma licença, que também permite que trechos da música sejam
usados para construir novas canções, regulará os direitos de um CD com
a participação do ministro, que a revista Wired deverá lançar em
novembro. Ele foi gravado durante um show em Nova Iorque, do qual
também participaram David Bowie e os Beastie Boys e foi transmitido
pela internet.
Tanta agitação no mundo da cultura mostra como a arte proprietária
vagarosamente dá espaço a formas mais livres de expressão, sem ameaçar
o sustento de ninguém. Parece que, em breve, assim como o software
livre já substitui com vantagens o software proprietário, ninguém mais
precisará da arte que não seja livre.