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Essência e mudanças

Por Cesar Brod

Data de Publicação: 12 de Abril de 2011

Mais uma vez estou na sala de embarque do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Como em todas as outras vezes em que aqui estive, saio preparado para voltar. Sempre foi assim. Mal de gaúcho. Talvez a essência de todo gaúcho.

Já fingi muitas vezes ser um ser do mundo. Eu até gostaria de ter a capacidade de sacar definitivamente minhas raízes e conseguir partir sem o compromisso de uma volta. Mas não adianta querer lutar contra tal essência. Posso até ficar anos longe, como aconteceu na época em que morei em São Paulo, mas o pealo de sangue é forte demais.

Gaúcho que fica muito tempo longe de casa se enche de manias. Se, em sua terra, só tomava chimarrão se alguém oferecesse e só comia churrasco em festa e em restaurantes de espeto corrido (que eu outros lugares do mundo chamam de rodízio), quando longe se atucana atrás de erva mate e de uma costela gorda, de preferência de ripa. Gaúcho, longe de casa, vive em CTG, tem tudo o que foi gravado por Kleiton & Kledir (desde a época dos Almôndegas) e manda cortar um tonel ao meio para demonstrar suas habilidades de assador. Gaúcho que nem gosta de futebol, longe de sua terra, é um gremista fanático e tem, na TV por assinatura, acesso a todos os jogos dos campeonatos de futebol de seu estado, primeira e segunda divisão.

Gaúcho é um bicho bairrista. Acha que San Francisco tem todo o jeito de Porto Alegre e adora um frio para, em manga de camisa, rir dos encarangados.

Agora estou embarcando para Luxemburgo, um país de meio milhão de habitantes, bem menos que Porto Alegre. Apesar do tamanho, falam-se três línguas em Luxemburgo: francês, alemão e luxemburguês. Bem parecido com o Vale do Taquari, onde ouve-se nas ruas pessoas falando em alemão, italiano e português. No evento em que participarei, o Seminário Internacional de Saúde Eletrônica para Economias Emergentes ([IWEEE.ORG http://www.iweee.org)] a língua usada será o inglês.

Talvez uma das memórias mais fortes que eu tenho da minha infância seja a do exílio em São Paulo, para onde minha família mudou-se quando eu tinha sete anos de idade. Meu pai foi atrás de uma melhor oportunidade profissional e foi ficando. Eu não. Depois de anos passando todas as férias na casa de meus avós, aos 22 anos voltei para morar em Porto Alegre, com minha esposa já esperando minha primeira filha. A segunda também nasceu aqui. A terceira nasceu em São Paulo, mas criou-se entre Arroio do Meio e Lajeado. Hoje as três moram juntas em Porto Alegre. A mais velha cursa Medicina, a do meio Relações Internacionais e a mais nova prepara-se para o vestibular de Engenharia de Energia.

Em meados dos anos 1980, a reserva de mercado que existia no Brasil para produtos de informática foi, gradualmente, terminando. Eu havia concluído o ensino médio técnico no Colégio Lavoisier e, mesmo planejando trabalhar com áudio - eu sonhava inventar sistemas nos estilos hoje conhecidos como Dolby, DTS, etc - acabei sendo mordido pelo bicho da informática já no meu primeiro emprego, na NCR. Enquanto cursava Física na UFRGS, em 1988, viajei para os Estados Unidos pela primeira vez. Os equipamentos com os quais eu passei a trabalhar no Brasil, primeiro processadores de comunicação e depois sistemas de processamento paralelo massivo e tolerantes a falhas, exigiam um profundo treinamento. Na época, e até hoje, o diferencial essencial que acabou levando-me a viajar muito, foi a fluência no inglês e, depois, no espanhol. As viagens para as minhas capacitações profissionais no exterior acabaram tornando-se incompatíveis com a minha vida acadêmica. Mas independente do lugar para onde eu ia, independente do tempo em que eu ficaria fora, era sempre com um "até logo" que eu despedia-me do Salgado Filho.

O acesso à capacitação em muitas tecnologias de ponta, feiras e eventos tecnológicos no mundo inteiro, só reforçavam a minha essência estranhamente bairrista: aquela coisa de pensar globalmente e agir localmente, fazer a diferença na "minha" vila. Minha história com o software livre e a criação de um modelo de negócio cooperativo para a produção e integração deste tipo de tecnologia já está bem documentada em vários artigos e outros textos, por isso a omito aqui. Mas refletindo sobre isto, hoje, vi que toda esta história faz parte de um articulado plano de eterno retorno à minha terra.

O tema deste texto é o que parece ser, por vezes, um conflito entre a fidelidade à essência e a necessidade de mudanças. A tecnologia é um agente transformador que não é, de forma alguma, neutro. O conflito inevitável é o que existe entre a produção, a inovação tecnológica e o acúmulo de riqueza. Por mais que se tenha falado da necessidade - e da justiça - da ampla abertura de qualquer tipo de conhecimento, os exemplos de enriquecimento apontam justamente para casos onde o conhecimento é tratado como privado, de propriedade e acesso de poucos. Parece que o segredo permite o acúmulo de riqueza e a liberdade do conhecimento não leva à distribuição desta riqueza, mas sim à sua dissipação.

Agora completo este texto já em casa, acostumando-me à diferença de cinco horas entre Luxemburgo e Lajeado e ainda inebriado pelo aprendizado e beleza de toda a viagem, em especial pelo turismo acidental em Trier, no último dia de Europa. Na cidade de Trier, a mais antiga da Alemanha, que preserva muito de sua essência romada e medieval, conheci o lugar de nascimento de Karl Marx, hoje um museu.

Acho que este texto ainda pedia, em minha mente, sua conclusão e, durante a visita ao museu, ouvindo e lendo sobre a história de Marx, Engels, a vida e os estudos que os levaram ao Manifesto Comunista e a O Capital, cheguei perto dela. Enquanto a riqueza for representada pelo acúmulo material, de dinheiro, quem acredita fielmente em seus princípios de total liberdade dos conhecimentos irá, de fato, vê-la dissipar-se. A mudança que temos que propiciar é a que leve a uma outra riqueza associada ao conforto, ao bem estar de todos, para chegar em uma época em que olhemos para os relatos históricos e achemos esta coisa de dinheiro bem antiguinha. Uma riqueza que sintamos prazer em distribuir, como sentimos prazer em distribuir o conhecimento.

A frase que completaria este texto já estava pronta: temos que nos assumir como agentes de mudanças para poder viver plenamente a essência dos nossos valores.

Vida longa e próspera a todos! Vou lá fazer um chimarrão...

Obrigado ao leitor Rafael Albani por compartilhar o link para o Venus Project em meu artigo A liberdade é saudável?.

Sobre o autor

Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.

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