Eucaristia Digital
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
12 de Junho de 2004
Estava no aeroporto de Porto Alegre, na fria manhã da segunda-feira
7/6, voltando para casa depois de um encontro histórico, intenso e
arrebatador. Mais de 3000 pessoas cultas e inteligentes, de mais de 20
países, haviam debatido e discutido, durante 4 dias e em mais de 460
encontros, os rumos e o futuro da maior criação intelectual colaborativa
que a humanidade já foi capaz de produzir. A batalha técnica vencida,
resta a jurídica. Enquanto aguardava o embarque, folheava um jornal local
em busca de notícias sobre o evento encerrado dois dias antes, em 5/6.
Queria resolver um enigma.
Por que a imprensa local não cobriu o evento além de lacônicas notinhas
sociais, enquanto a Folha de São Paulo dava, em duas páginas, destaque
ao ponto alto do evento, que foi o lançamento no Brasil do projeto
Creative Commons, pelo Centro de Direito e Cidadania da Faculdade de
Direito da FGV do Rio, com direito a show do ministro da Cultura para
convidados, em 4/6? A manchete da Folha citava o mentor do projeto, o
jurista norte-americano Lawrence Lessig, que em entrevista dizia: "[a]
esperança está no Brasil". Zero vírgula de cobertura local, enquanto
o New York Times citava, do outro lado, o presidente da subsidiária
brasileira da maior empresa de informática do mundo, desdenhando esta
esperança ao projetar como insignificante a iniciativa do governo que,
aos olhos do consagrado jurista, a justifica. Se insignifcante, por
que dela se ocupam aquele jornal e o poderoso executivo?
Folheando "O Sul" encontrei, na coluna de Diego Casagrande, uma valiosa
pista para o enigma. O colunista citava a mesma fonte do New York Times,
julgando como equivocada a decisão do governo de adotar software livre
nos computadores do setor público. "Encontramos um discurso muito
mais ideológico, sem base na área técnica", teria dito o presidente da
Microsoft no Brasil. "Eu sei que essa não é a melhor maneira de criar uma
base de desenvolvimento para exportação, pois não se pode ter receita de
uma coisa que é gratuita", cita-o também a Folha online. Serviço Roiters,
New York Times, Folha online, e finalmente, O Sul.
O colunista do jornal gaúcho desperdiçou a oportunidade de aprender o
que é software livre diretamente com quem o faz. Preferiu regurgitar
press-releases globais, replicando desvirtuações, tal qual a Folha
online. "Os software livres", diz o colunista, "são programas
de computador que podem ser copiados e distribuídos sem fins
lucrativos". Parece surreal, mas há que se perguntar: será que esses
jornalistas acreditam no que escrevem? Afinal, estão lidando com o
paradoxo da liberdade.
Liberdade, como disse Cecília Meireles, não há quem defina, e não há que
não entenda. Tão ideológico quanto os ideais iluministas que nos trouxeram
o Estado democrático de Direito. Tão ideológico quanto confundir coisa
que é gratuita com coisa que pode ser. Tão ideológico quanto insistir em
contrapor, em se tratando de software, liberdade e comércio, enquanto
esquisofrênica ou hipocritamente se apoloza o livre-comércio, na era
dominada por softwares. Há software proprietário gratuito, e licenças
comerciais de software livre. Se o Brasil sangra suas escassas divisas em
mais de um bilhão de dólares por ano em licenças de software proprietário,
enquanto, mesmo depois de vários anos de esforços e incentivos, "exporta"
um sétimo disto, parace claro haver algo de errado com a velha fórmula.
Fosse tão simples como diz o colunista, os bilhões de dólares que a IBM
já investiu em software livre, nos últimos seis anos, teriam sido a fundo
perdido. Será que os acionistas sabem disso? Se tivesse presenciado os
debates no V Fórum Internacional Software Livre, o colunista poderia ter
feito esta pergunta diretamente ao gerente de tecnologia Linux da IBM
Brasil. E quem perdeu a oportunidade em Porto Alegre, poderá fazê-lo
em São Paulo, no painel sobre modelos de negócio com software livre,
no X Congresso de informática pública, em 23/06.
Um software será livre, de acordo com quem o produz, se seu modo
de produção e licenciamento equilibra liberdades dos interessados.
Usuário, criador e distribuidor. A gratuidade é uma dessas liberdades,
não a sua definição. Usuário quer liberdade de uso, onde pode se incluir a
gratuidade, mas esta liberdade pode conflitar com outras: o distribuidor
há de querer a liberdade de lucrar com seu conhecimento do software,
e o criador pode querer a liberdade de controlar a evolução da sua
obra. O equilíbrio está no meio, não em extremos.
Na produção de software proprietário, o programador abdica da liberdade
de controlar sua obra, em troca de salário sob compromisso de sigilo.
O distribuidor, fantasiado de "fabricante", torna-se proprietário de
tudo. Desde o código-fonte, tido como segredo de negócio, até as cópias
das versões executáveis, licenciadas ao usuário em regime draconiano, cuja
eficácia apresenta custos crescentes. O que é natural, pois a evolução
das tecnologias da informação conta uma história de perpétuo rompimento
dos mecanismos de controle do poder que as técnicas sobrepujadas permitem
amealhar.
Na produção de software livre, o programador às vezes abdica de um
canal de receita imediata pelo seu trabalho, em troca da preservação
do controle dos termos de uso da sua obra. Em contrapartida, se a obra
tiver qualidades, agregará eficiência aos empreendimentos em torno
dela. Seu valor semiológico, conversível em receita com serviços,
será proporcional à magnitude do esforço colaborativo onde se insere,
que por sua vez cresce na medida em que a qualidade da funcionalidade
agregada induz novos colaboradores. São perto de 350 mil para o Linux,
sete vezes mais que o quadro de funcionários da Microsoft. O código-fonte
é acessível sob licença que preserva esta liberdade, enquanto a cópia
executável é tida como propriedade do usuário.
Software livre, como água, só será gratuito para quem sabe beber na
fonte, mas será límpido para qualquer um que souber fazê-la jorrar.
Como água do conhecimento, preenche naturalmente o caminho do menor
esforço, em direção à sua demanda funcional. É o modo de produção
criativa que, nessa era massivamente conectada pela internet, leva à
melhor relação custo/benefício na produção e negócio do software. Só tem
a perder com ele quem consegue galgar posições monopolistas no modelo
proprietário. Essas posições são induzidas pelo efeito rede no mercado
de TI, cujos modelos de negócio prevalentes já mostram sinais de exaustão.
O problema é que a ganância faz a grande maioria acreditar que serão eles
os eleitos a tais posições pelo deus mercado, enquanto seguem correndo
atrás da cenoura amarrada na ponta da vara que pende à frente de suas
carroças digitais, não se importando com os efeitos colaterais de se
tratar conhecimento como bem escasso. Código fonte é conhecimento, mas
ao tomarem-no por segredo de negócio, e software por mercadoria, põem-se
a reinventar incessantemente a roda, inclusive para tentar patenteá-la
[1]. Conhecimento se valoriza com compartilhamento, não com posse.
Sabedoria, e não conhecimento, é que é um bem escasso.
É um equívoco pintar o software livre como ameaça à Microsoft, como
insinuam a matéria da Folha online e a incongruente nota no New York
Times. Quem a ameaça, na verdade, são as leis antitrust, além da lógica
que motivou suas sanções. Pelas leis norte americanas e européias,
o monopólio em si não é crime, mas o abuso do poder econômico a partir
de posições monopolistas, sim. Ocorre que a economia digital distorce
antigos equilíbrios. A empresa foi condenada -- nos EUA em última
instância e na Europa em primeira -- justamente por isso, mas as penas
aplicadas não funcionam como desestímulo, por serem brandas em relação
ao que ela pode lucrar violando-as. Haverá pois um custo social, que
algum dia será cobrado.
A Microsoft, se quisesse, poderia ganhar dinheiro com software livre,
como fazem a IBM, a HP, a Novell, para ficar nas multinacionais que também
fornecem software proprietário. Ocorre que se o modelo livre prevalecer,
ela perde as vantagens da posição monopolista. O monopólio dominante
passa a ser o da liberdade de conhecimento, neutralizando o efeito rede
dos mercados de TI. Pelo que não seria legítimo considerar o modelo
livre uma ameaça a empresa alguma, principalmente às que se dispõem
a acompanhar a evolução do mundo, já que é da natureza humana corrigir
abusos de poder. Quanto ao software livre, seria melhor considerá-lo antes
como uma reação a este estado de coisas. E tão ideológico quanto este.
O movimento do software livre pode ser considerado, em seu próprio
mérito, como a fruição da mais nova etapa evolutiva das formas do
saber e da propagação do conhecimento, possibilitadas pela revolução
digital. Formas de se fazer software com eficiência, economia e autonomia
dos interessados em seu uso, como explica o economista Yochai Benkler
[2]. Penso, portanto, que tal insinuação está invertida, e invertida só
serve ao sensacionalismo ou a motivos escusos. O monopólio da Microsoft
é que deve ser considerado uma ameaça real. Não diretamente pelos seus
negócios, mas pelo seu poder de lobby sobre Estados.
Pela forma como vem assim agindo, ela ameaça a liberdade do cidadão
controlar as condições da sua própria comunicação digital, cada vez mais
entranhada à sua identidade civil. Identidade esta cada vez mais refém,
por isso, de um regime de propriedade intelectual cada vez mais radical,
esotérico e dogmático, onde 60 mil dólares e um sofisticado discurso
legalês patenteiam praticamente qualquer coisa. De idéias por trás
de trechos de programas, inclusive publicadas há mais de 2000 anos, a
idéias simples e óbvias, tal qual o clique duplo em botões de software
como sinal funcional.
Tal qual os indultos papais que antes vendiam proteção divina à alma
contra riscos infernais, as patentes esotéricas de software hoje vendem
proteção jurídica ao investimento especulativo, contra quem esteja no
caminho dos seus lucros. Se a Microsoft prefere manter todos os seus
ovos no cesto do modelo proprietário, e bancar uma luta titânica contra a
marcha do tempo, ela mesma pode ser considerada uma ameaça ao seu próprio
poder no futuro. Nada mais ideológico do que esta resistência evolutiva,
ofuscada pelos dogmas do fundamentalismo de mercado.
Nossa Constituição Federal exige do governante zelo na defesa da soberania
do Estado. Se um governante decide desqualificar o uso, nos computadores
da máquina administrativa sob seu comando, de um sistema operacional
proprietário contendo vários grampos, embutidos pelo fabricante sob
a justificativa de ter que gerenciar seus direitos digitais, e sob o
precedente de suspeitas de compartilhamento de acesso com serviços de
inteligência imperialistas [3], é razoável supor que o faz no exercício de
tal zelo. Conforme estudo realizado e publicado pela empresa FuturePower,
há pelo menos 16 dessas portas de fundo no sistema operacional windows
XP, enquanto o usuário só pode desabilitar 11 delas [4].
Se, por outro lado, o modelo de licenciamento do software livre permite
ao governante esquadrinhar o sistema operacional que venha a escolher,
para se certificar inclusive de que não haverão grampos nele escondidos,
podendo determinar exatamente com quais funções irá operar, a partir
de uma distribuição de código executável por ele mesmo montada com o
código fonte livre, o zelo na defesa da soberania se qualifica como
justificativa para o critério técnico de licenciamento que prescreve
autonomia ao usuário para garantir, por seus próprios meios, controle
do risco de grampos em tais sistemas.
Doutra feita, o que se tem dito acerca das licenças que a fornecedora
do XP oferece a governos, à guisa de auditoria de software (Government
Serucity Licence Program), não passa de tosco arremedo, se não pior. Qual
eucaristia digital, baseia-se na crença de que o deitar d'olhos em tela
onde se vê código fonte fá-lo-á transmutar-se, pelo poder da fé na marca,
em código executável instalado no computador do crente. Como a hóstia,
que, engolida, se transmuta em corpo crístico. Completa-a, a mácula
do pecado original: caso esse governo venha algum dia a desenvolver
software com função semelhante, poderá cair sob suspeita do hediondo
crime de pirataria de propriedade intelectual alheia. A dificuldade para
se tirar a limpo esse sacramento pós-moderno é que tais licenças, como é
de praxe na empresa, não são publicadas ou são tratadas sob compromisso
de sigilo. Chamar isso de auditoria, se não for ideológico, é místico.
Quando da tragédia na base de Alcântara em 22 de agosto passado, alertei
para o fato de que, caso o sistema de controle de lançamentos do VLS
estivesse operando com sistema operacional proprietário inauditável, seria
mais provável que a investigação do incidente resultasse inconclusiva,
incapaz de determinar se o que houve foi acidente ou sabotagem
[5]. E o relatório da comissão de investigação veio a ser, de fato,
inconclusivo. Assim, se alguém no governo especificar o windows XP,
por exemplo, para o SIVAM ou para a informatização do Poder Judiciário,
deveria ser processado como traidor se a Constituição for levada a
sério. Enquanto o marketing do status quo, disfarçado de notícia,
quer nos fazer acreditar, injuriosamente, que isto deveria ocorrer se
a especificação técnica resultar noutra escolha [6].
Por que estou lançando aqui tão mirabolantes hipóteses e míticas
metáforas? Porque, tendo sido nomeado pelo Presidente da República para
representar a sociedade civil junto ao órgão responsável pelos aspectos
normativos fundamentais à segurança coletiva nas práticas sociais
informatizadas -- o comitê gestor da ICP-Brasil --, sinto-me no dever
de alertar a opinião pública e as autoridades judiciárias sobre o que
está verdadeiramente em jogo neste conflito de opiniões sobre ideologia
e técnica.
v.2 - 13/06/04