A disseminação silenciosa do software livre
Colaboração: Celso Gonçalves
Data de Publicação: 17 de Maio de 2004
Por Hermano Vianna
FEITO EM REGIME COLABORATIVO E DESCENTRALIZADO, COM PEDAÇOS DE CÓDIGO
EM DIFERENTES COMPUTADORES ESPALHADOS PELO PLANETA, MOVIMENTO CONQUISTA
ALIADOS COMO A IBM E MODIFICA A NOÇÃO DE DIREITO AUTORAL
A DISSEMINAÇÃO SILENCIOSA DO SOFTWARE LIVRE
Dizem que a Rocinha é a maior favela da América Latina (gostaria de saber
qual é a maior do mundo). Dizem que Heliópolis é a maior favela de São
Paulo, a segunda maior do Brasil, a segunda maior da América Latina. Acho
que falam isso porque pouca gente - a não ser os moradores - conhece a Vila
Brasilândia, na zona norte paulistana. Fiquei impressionado quando passei
a primeira vez por lá. Parece muitas rocinhas, clonadas em muitos morros,
não tão íngremes quantos os cariocas, mas colados uns nos outros. Talvez
eu esteja cometendo um engano, e aquela área, nos mapas de urbanistas e
na percepção de seus moradores, não seja considerada uma favela. Mas que
parece uma favela, mesmo que com casas de alvenaria não tão amontoadas
umas sobre as outras, isso parece. E que parece infinita e muito maior
que a Rocinha ou Heliópolis, disso eu não tenho dúvida.
Ultimamente, tenho conhecido muitos lugares diferentes na periferia
paulistana, lugares que eu nem sabia que existiam, lugares onde
a maioria de meus amigos paulistanos, acostumados com o circuito
Espaço Unibanco-Ampgalaxy, nunca esteve. Fui também visitar a Cidade
Tiradentes. É uma Cidade de Deus amplificada, realmente uma cidade
dentro da cidade de São Paulo. Incrível como não se ouve falar nesses
aglomerados humanos, como eles - mesmo tão gigantescos - não ocupam
espaço nenhum no imaginário nacional e como lugares semelhantes cariocas
ocupam e são notícia. Não vou recomeçar aqui a velha disputa Rio-São
Paulo. Mas uma constatação é óbvia: Brasilândia, Cidade Tiradentes ou
mesmo Heliópolis não conseguiram gerar, nas pessoas que ali moram, um
sentimento de pertencimento como aquele que encontramos nos morros do
Rio de Janeiro. Já escutei muito funk produzido na Rocinha em que o MC
diz morar na "maior favela da América Latina" cheio de orgulho.
Nessa trilha, o funk C.I.D.A.D.E. D.E. D.E.U.S, de Cidinho e Doca,
é uma das mais emocionantes canções de protesto da história da música
brasileira, também baseada em militante ufanismo ("vá lá conhecer minha
cidade", "êta povo valente, êta povo gigante").
Não se entra também na Mangueira, no Salgueiro ou mesmo no complexo do
Alemão sem sentir que ali existe realmente uma comunidade orgulhosa de
si mesma, com uma história de sofrimentos, mas também de criatividade
cultural, fenômeno que só recentemente apareceu em São Paulo, mas em
territórios muito específicos, como Capão Redondo, hoje referência
cultural nacional por causa da música dos Racionais e da literatura de
Ferréz. O resto, a não ser um ou outro lugar que tenha uma importante
escola de samba ou alguma festa mais tradicional no "pedaço", é quase
sempre apenas dormitório, lugar de castigo com o qual ninguém quer
estabelecer nenhum vínculo emocional ou relação de vizinhança, inferno
no qual todo mundo foi despejado e de onde só se quer fugir.
Para quem é da teoria do "quanto pior, melhor", a situação de São Paulo
deve apresentar vantagens. Para que criar qualquer vínculo ou altivez por
morar num lugar miserável? O melhor seria fazer logo a revolução para
tirar todas essas favelas do mapa. Mas, já que essa revolução tarda,
um pouco de auto-estima bairrista, se bem usada, pode se transformar
em ferramenta de melhoria de condições de vida. O fato de isso não ter
acontecido nos morros cariocas e de o poder público fazer o possível
para entregar a mais vibrante cultura favelada para a contravenção ou
para o crime (samba para bicheiros, funk para traficantes) não é prova
de que não se possa ter resultados mais bacanas em outras cidades ou
outras situações.
A situação realmente é outra. Fui à Brasilândia, Cidade Tiradentes
e outros distantes bairros da periferia paulistana para visitar seus
telecentros, cujo objetivo é também atuar como centros comunitários. Não
sei se todos os moradores de São Paulo conhecem o projeto dos
telecentros. Deveriam, como dever cívico e também para aprender algumas
importantes lições. Não estou de maneira nenhuma fazendo propaganda
política suspeita em ano eleitoral: isso não é do meu feitio nem do meu
interesse. Os telecentros, do modo como existem em São Paulo, deveriam
ser transformados num projeto suprapartidário (para termos a garantia de
que não vão acabar quando os governantes mudarem) de salvação nacional,
com repercussões internacionais já evidentes. Eles podem tanto produzir
o orgulho comunitário e cidadão nas periferias quanto conectar todas
essas periferias entre si e com o mundo, não deixando que suas conquistas
criativas sejam cooptadas por sistemas político-culturais de "fora" ou
organizações criminosas de "dentro" que querem apenas tornar as periferias
mais periféricas. O telecentro é um espaço de inclusão digital. Ali
a comunidade têm acesso gratuito aos computadores, incluindo cursos de
computação, e à internet. São mais de cem no município de São Paulo. Vivem
lotados. Fiquei conversando com a garotada que encontrei no telecentro
da Brasilândia. Uma menina de uns 11 anos chegou com as amigas, todas de
shortinho, top e havaianas (o traje oficial das periferias brasileiras),
querendo saber como entrar no site da Barbie.
O instrutor não deu o endereço, mas mostrou para ela como o Google
funciona. Muitos garotos conversavam via ICQ (um, com primos do Ceará),
outros jogavam games variados, outros faziam pesquisa para trabalhos
escolares. Mas, bisbilhotando os computadores lá do fundo, descobri dois
adolescentes -de 16 anos- programando em HTML: estavam fazendo páginas
pessoais para mostrar para o mundo sua coleção de cards do estilo
"Yu-Gi-Oh!".
Qualquer movimento cultural, do punk a Luther Blissett, parece uma
"doença infantil" diante da ideologia do software livre
Barbies e games
A administração dos telecentros faz bem em não proibir barbies,
games e ICQ. Os pirralhos perdem o medo do computador, tratando-o
como um brinquedo. Os mais interessados levam a sério a brincadeira,
ficam íntimos da máquina e passam a programá-la. Não existe ferramenta
mais necessária no mundo de hoje do que uma boa base de informática -se
essa formação incluir programação, aí a pessoa deixa de ser apenas um
consumidor passivo da alta tecnologia.
Nos telecentros de São Paulo, a programação é incentivada, pois tudo ali
funciona à base de software livre. As máquinas não guardam segredos, seus
códigos são abertos, e quem quiser pode investigar mesmo o núcleo de seu
sistema operacional. Essa abertura levou gente como Cléber Santos, 18 (pai
pedreiro-mas-há-pouco-tempo-desempregado, mãe faxineira-salário-mínimo),
frequentador do telecentro da Cidade Tiradentes (o primeiro inaugurado
pela Prefeitura, em 2001), a fazer vários programas -também de código
aberto- com os recursos de programação que aprendeu em regime de total
autodidatismo. Cléber, hoje monitor do telecentro da sua "Cidade"
(e o fato de participar de um projeto pioneiro produziu seu orgulho de
morar ali), fala com a maior normalidade do mundo do fato de conhecer e
já ter trocado idéias com Richard Stallman, papa do movimento software
livre em todo mundo, o principal criador desse novo conceito de liberdade.
Não me canso de admirar essa conexão direta entre a periferia mais
pobre de São Paulo (os telecentros foram instalados nos lugares dos mais
baixos Índices de Desenvolvimento Humano do município) com o movimento
político, cultural e econômico que considero ser o mais de vanguarda e
importante que acontece hoje no mundo. Qualquer outro movimento político,
da antiglobalização ao dos sem-terra, se revela ineficiente diante das
conquistas do software livre. Qualquer movimento cultural, do punk a
Luther Blissett, parece uma "doença infantil" diante da ideologia do
software livre.
É uma revolução enorme, talvez tão importante quanto qualquer outra
revolução da história da humanidade (por incrível que pareça, estou
medindo bem minhas palavras, para não parecer exagerado), que acontece
quase na surdina, sem nenhuma guilhotina. É uma revolução feita em regime
colaborativo e descentralizado, sem um partido político no comando, mas
com pedaços de código em computadores diferentes espalhados pelo planeta,
comandados por gente que trabalha não para ficar rica, mas querendo o
bem comum -e às vezes um pouco de fama, já que ninguém é de ferro.
O negócio livre está dando certo, já ameaça a Microsoft (e nada pode
estar mais no centro do poder contemporâneo do que a Microsoft), já tem
como aliados outros capitalistas poderosos como a IBM (o que mostra como
o capitalismo é esperto), além da totalidade da esquerda inteligente
e atenta, já modifica a nossa percepção sobre propriedade intelectual
(a propriedade que importa em nossos dias), já dá outros sentidos para
nossas vidas que não a busca desenfreada de lucros e desenvolvimentos
insustentáveis. Mas a batalha mal começou.
É interessante perceber um consenso em vários setores do governo federal
brasileiro a favor do software livre. Vi, no ano passado, em Brasília,
Richard Stallman, sem paletó e muito menos gravata, ser aplaudido
por uma mesa que incluía José Sarney, João Paulo Cunha, José Dirceu
(trazendo os votos de boas-vindas do presidente Lula), Gilberto Gil
(que na ocasião proferiu seu discurso mais psicodélico), entre outras
autoridades. Stallman nunca foi recebido assim em nenhum país do mundo. E
poucas pessoas tão polêmicas quanto Stallman foram recebidas com tanta
reverência por qualquer governo.
Muitos projetos de disseminação de software livre pelos computadores
governamentais já estão sendo colocados em prática. O Brasil vira uma
espécie de farol para o movimento, de laboratório onde testes importantes
podem ser aplicados -o que gera uma simpatia enorme pelo país em meios
ciberesclarecidos. Mas, como disse, a batalha mal começou.
E a continuação da batalha que vem por aí já se anuncia bem pesada. Noutro
dia, o "New York Times" publicou um artigo bem suspeito acusando o
Brasil de ser um paraíso do crime informático. Não gosto de teorias
conspiratórias, mas, daí a dizer que software livre incentiva
ciberpirataria, e a polícia planetária baixar na nossa porta, é um
pulo. Temos que nos preparar para a briga e não nos deixar enganar. Pois
o que não falta no mundo é projeto de inclusão digital que tem como
objetivo transformar cada vez parcelas maiores da população em clientes
do Windows e seus caros "upgrades".
O software livre mostra o único futuro alternativo àquele que parece
óbvio e sufocante: a cada vez maior dependência de uma única empresa,
a Microsoft. O conjunto de telecentros pode ser pensado como uma zona
autônoma, espero que não tanto temporária. Disso a periferia paulistana
pode se orgulhar: tem muito provavelmente a maior rede pública de
software livre do mundo. É um projeto que está apenas começando. Mas
aquela garota que entrou ali procurando o site da Barbie já meio
que chama de otários todos nós que pagamos por software proprietário,
ainda por cima mais instável que o GNU/Linux e suas aplicações (eu juro:
são tão fáceis de usar quanto os programas para Windows com os quais já
temos imposta familiaridade).
Ninguém sabe de que maneira a garotada periférica vai usar a arma
cibernética livre que tem na mão para melhorar sua vida. Querendo, e os
governos e empresas continuando a investir em espaços como os telecentros,
podem criar a cultura ciberpopular de programação brasileira, e os "novos
quilombos de Zumbi" serão digitais. Se isso acontecer, ao passar na Cidade
Tiradentes, espero que totalmente ciber-reurbanizada, o brasileiro do
futuro vai ficar tão ou mais orgulhoso do que quando vê a Mangueira ou
a Mocidade Independente, os produtos mais nobres das favelas cariocas,
entrarem no sambódromo.
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O
Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na série
"Brasil 504 d.C.", do Mais!.